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Roteiro

Tomar

e Constância

Por José LuísPeixoto

José Luís Peixoto

“Àquela hora, ao atravessar a cidade, o rio abdicava de qualquer impaciência que pudesse exprimir noutros pontos do seu caminho.”

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ConheçaJosé Luís Peixoto

Em 2001, com apenas 27 anos, José Luís Peixoto recebeu o Prémio Literário José Saramago. O prémio foi atribuído a Nenhum Olhar, o seu primeiro romance.
Desde então, através de inúmeras traduções, as suas obras têm sido difundidas nas mais diversas latitudes. O reconhecimento do público e da crítica afirmou-o como um dos autores de maior destaque da literatura portuguesa contemporânea.
“Contar-me a mim próprio através do outro e contar o outro através de mim próprio, eis a literatura.” Esta afirmação pertence ao romance Autobiografia, onde Peixoto ficcionou sobre José Saramago, integrando-o, como personagem, na sua obra, assim, reconhecendo a marca que o autor de Memorial do Convento lhe deixou.
Nesta Viagem a Portugal Revisited, José Luís Peixoto regressa aos caminhos de José Saramago, levando um olhar novo em busca do que mudou e do que permaneceu. Com atenção especial ao património, à natureza e à cultura, cada roteiro será o ponto de partida para paisagens literárias que nos contam a nós próprios através de Portugal.

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Para ouvir José Luis Peixoto a ler um excerto sobre Tomar e Constância, do capítulo “Entre Mondego e Sado, parar em todo o lado” da obra Viagem a Portugal, de José Saramago.

José Luís Peixoto

Por Saramago

Viagem a Portugal

Entre Mondego e Sado, parar em todo o lado
Uma ilha, duas ilhas


«Pela beirinha do Tejo é que o viajante gostaria de seguir, mas a estrada vai por dentro, e só lá adiante, passado Montalvo, se aproxima, para oferecer, em vez de um, dois rios. É Constância a formosa, mais formosa quando vista da outra margem, em seu magnífico anfiteatro, acasteladas as casas encosta acima até à Igreja de Nossa Senhora dos Milagres, que é matriz. Para lá chegar, precisa o viajante de boa perna e largo fôlego. Mas este tempo de clara Primavera enche-lhe a calçada de um perfume absoluto de rosas, nem sente a aspereza da subida.

Esta igreja, pelo tipo de estatuária, lembra certas igrejas barrocas italianas, e, singularmente, o efeito é acentuado pela pintura do teto, obra de José Malhoa que mostra Nossa Senhora da Boa Viagem em gesto de abençoar a união do Zêzere e do Tejo, a qual obra assim se revela muito menos naturalista do que o seu vocabulário de escola prometia. Ao pintar este teto, Malhoa deixou-se influenciar pelo que o envolvia. O viajante apreciou os baixos-relevos seiscentistas de madeira que vieram da Ermida de Santa Ana, em particular, pelo pitoresco da situação, geralmente representada com circunstancial solenidade, o Batismo de Cristo, que, aceitando em primeiro plano a representação convencional, mostra, ao fundo, o momento anterior, isto é, S. João Baptista sentado a descalçar as botas e Cristo despindo a túnica pela cabeça, nu do torso para baixo, ainda que discretamente rodando o corpo em modo de garantir a conveniente ocultação. É uma maravilha de graça, estes rapazes que vão ao banho numa tarde de calor, assim claramente mostrados na simplicidade do gesto e de um gesto natural de viver.

O viajante desceu até ao rio, tentou refrescar-se na Flor do Tejo, casa de pasto ribeirinha sob alpendres de caniçado e folhagens, como nos meloais se usam, mas o menino da casa, infante de quatro meses, não estava bem da barriga e chorava sem remissão, melhor seria deixar o refresco para outra vez e ir à casa de Camões, que logo adiante fica. É o que dizem, e tanto viso tem de ser verdade como de não o ser. Ao viajante, filho deste rio, agrada pensar que por esta margem, entre os avós destes salgueiros, passeou Luís Vaz de Camões, curtindo ou não pesares de Catarina. Afinal, que erro histórico se praticaria levantando estas paredes, reconstituindo aqui uma casa provincial do século XVI, com as obras do poeta, retratos tão duvidosos como a casa continuaria a ser, vistas da antiga vila de Punhete, se as há? Não mais que dizer-se: “Dentro deste túmulo estão os ossos de Luís de Camões”, como será levado a acreditar quem ingenuamente nos Jerónimos de Lisboa contemple o funerário monumento. Constância merece tanto ter o seu Camões, como cada um de nós o nosso. E o viajante tem de confessar que, ao contemplar esta ruína, viu, com os seus olhos visto, o vulto de Luís Vaz decendo as Escadinhas do Tem-te Bem, com o ar de quem ia poetar ao rio.

O viajante, quando em Abrantes se declarou pouco sabedor de quartéis-generais, ainda julgava poder esconder que nada entende de artes militares. Mas agora, diante do Castelo de Almourol, vendo-o desta margem onde, à sombra das oliveiras, há soldados refocilando sestas e lendo fotonovelas, considera, em sua definitiva ignorância, que esta fortificação não deve ter servido de muito a Gualdim Pais e a quem veio depois. Que defendia o castelo? A montante ou jusante, se não há vaus praticáveis, passariam os mouros de batel, estando desguarnecida a margem norte; e um cerco em boa e devida forma, impedidos os sitiados de descer à pesca da fataça, em pouco reduziria a resistência, faltando lá dentro a farinha para a bolacha. Mas o castelo está aqui, obra de pedra e força, e a sua presença afirma a sua necessidade. Então o viajante acabará por ceder, com a mental reserva de que não seria tanto o objetivo militar, mas a precisão de abrigo, que tornava este castelinho alvo de batalhas de montante e virotão. Abundam do lado de lá os descampados, imagine-se o que então não seria. O viajante não atravessou o rio: com raras exceções, os castelos vêem-se melhor de fora, e este melhor do que qualquer outro.

Não pôde entrar na Igreja de Tancos, rodeada de casas e muros baixos de gosto arquitetónico rural já ribatejano, mas estimou ver o que resta do espírito renascentista da construção, os nichos da fachada, uma Nossa Senhora da Misericórdia que misericordiosamente se conserva, e as decorativas portas laterais, uma delas datada de 1685 na padieira.

Por este caminho parece o viajante que vai romper direito ao mar, por Torres Novas e a salto das serras de Aire e dos Candeeiros. Tempo havendo, lá chegará, porém, agora, depois de ir a Atalaia, tornará sobre os passos dados, atravessará outra vez a ponte sobre o Zêzere, e depois, pela margem esquerda acima, cruzará o rio em Castelo do Bode. Este vaivém é necessário, não fosse ficar de lado, por fora de mão, a bela igreja de Atalaia, com a sua fachada que terá inspirado São Vicente de Abrantes, é o belo interior de azulejos magníficos. Implantada num extremo da povoação, cujo crescimento felizmente a poupou, a igreja, com os seus três corpos reais e cinco aparentes, é uma construção fascinante. Apetece brincar às escondidas por trás dos arcos extremos, isto sente o viajante, animado pela descoberta de que a arquitetura, só por si, pode tornar feliz um homem.

Não pode anotar tudo quanto lhe agrada. Registará, por isso, apenas de passagem, a beleza da abóbada de nervuras da capela-mor, o imponente túmulo barroco à esquerda, a imagem de Nossa Senhora do século XIV, atribuída a Diogo Pires, o Velho, e, cumprida esta obrigação, só terá olhos para os admiráveis azulejos, sobretudo, ah, sobretudo os painéis policromos que adornam as empenas da nave central, representando cenas bíblicas: A Criação do Mundo, O Pecado Original, A Expulsão do Paraíso, Abel e Caim, O Dilúvio, A Entrada dos Animais na Arca. São quadros de ingénuo e saboroso desenho, em particular o que representa o dilúvio, com a grande arca flutuando nas vagas, tosca e pesada. A cor, azul-profundo e laranja, ilumina toda a parte superior da igreja, para onde os olhos dos fiéis deviam levantar-se muitas vezes, quando todas aquelas lições eram tomadas com inteira seriedade, e hoje os deverão fazer levantar também, por iguais razões, querendo, mas sobretudo porque estes painéis são uma admirável obra de arte popular, de qualidade poucas vezes igualada. Quando o viajante sai, custa-lhe abandonar este singular templo, com a sua fachada de “ombros largos”, que escondem os botaréus em que o corpo do edifício se apoia. Mas necessidade pode muito, vamos ao Zêzere.

A estrada segue a cavaleiro da margem por espaço de três quilómetros. Depois mete-se ao monte, e passada uma légua surge a barragem. É Castelo do Bode. A grande albufeira está no seu máximo enchimento, é uma massa poderosa de água, um mar interior que estende braços por todos os vales. Tanto como de artes militares, o viajante é ignorante de engenharias hidráulicas. Pode portanto, legitimamente, espantar-se que este muro de betão, mesmo gigantesco, mesmo calculadíssimo de estruturas profundas e obras vivas, seja capaz de aguentar um empuxo de água que em linha reta se prolonga por mais de trinta quilómetros, sem diques intermédios. Aliás, o viajante tem esta boa qualidade: admira tudo quanto não é capaz de fazer.

Daqui a Tomar não é longe, e por isso, estando tão bonito o dia, resolve meter pela Beberriqueira, percorrer as florestas desta margem do Zêzere, até alcançar Serra, e mais adiante outra vez a albufeira. É uma volta que dá grande consolo aos olhos, amplas vistas sobre a frescura das árvores, uma luz macia coada através das ramagens, nada mais é preciso para fazer um viajante feliz.

Quando desce à margem tem diante dos olhos a ilha do Lombo, um Almourol mais pequeno, sem castelo, apenas uma breve construção entre árvores, um cais acostável que daqui mal se distingue. Em tempos em que a albufeira não existia ainda, supõe o viajante que o rio correria a um lado, e o que hoje é ilha seria então uma colina avançada sobre o leito. Não que o caso tenha importância, mas o viajante gosta de entreter-se com estas e outras observações. Agora vai navegando sobre as límpidas águas, profundamente verdes, e à medida que se afasta da margem, sente-se liberto de cuidados, de horas pontuais, sequer do seu próprio gosto de viajante. Está a retirar-se do mundo, entra no nirvana, este é que é, afinal, o Letes do esquecimento. E quando põe o pé em terra não pode afastar o pensamento de que bom regalo seria ficar ali por dois dias ou vinte, cama, mesa e roupa lavada, até que o mundo de fora ou a inquietação de dentro o agarrassem por uma orelha, para aprender a não fugir às obrigações.

Não esteve duas horas. Esta paisagem de água e montes ao redor, este lago suíço, este remanso estão fora das humanas medidas. É uma paz excessiva. Regressa à Terra, vem agora num velocíssimo barco com motor fora-de-borda, e isso é também uma experiência agradável, as águas que se apartam para os lados, o rugido da máquina, foi breve esta viagem à ilha do Lombo, mas valeu a pena.

Entra em Tomar pelo lado oposto ao Castelo dos Templários, dá, por via do alojamento, as necessárias voltas, e, não havendo hoje tempo para mais, verá a Igreja de São João Baptista e a sinagoga. Tem a igreja um pórtico manuelino cuja beleza a nudez da empena torna mais sensível. A torre sineira é uma pesada massa que se recusa a deixar-se integrar na simplicidade exterior do templo. Vale por si, e está ali para o afirmar.

Esta Igreja de São João Baptista é vasta, com as suas três naves de arcos ogivais, bem lançados. A nave central, mais alta, desafoga todo o espaço, mas o óculo e as janelas não bastam para romper a penumbra que a esta hora se vai instalando. Pode no entanto o viajante apreciar, com tempo e atenção, as tábuas de Gregório Lopes. Este pintor régio devia ter sob as suas ordens uma excelente oficina e também ser dotado de grandes qualidades de mestre e de orientador: mostra-o a unidade de fatura destas e doutras tábuas, a finura do gosto decorativo, o fácil trânsito da cor e do desenho de tema para tema. A Degolação, de teatral composição de figuras, tem um verdadeiro rapto plástico nas alabardas obliquamente erguidas sobre as cabeças.

O púlpito, que se supõe ser da mesma mão que traçou e executou o pórtico, lembra, tanto pelo lavrado dos elementos como pela composição geral, o de Santa Cruz de Coimbra. É mais trabalho de ourives que de escultor da pedra. O viajante aprecia, mas não fica deslumbrado. Os seus gostos, já o disse, reclamam que se respeite a fronteira invisível, e por isso tantas vezes ultrapassada, por trás da qual a pedra ainda conserva a sua natureza profunda, a densidade, o peso. A pedra, esta é uma simples opinião, não deve ser trabalhada como estuque, mas, não sendo (o viajante) de ideias fixas, está pronto a aceitar todas as exceções e a defendê-las com o mesmo calor que emprega na defesa do esculpido contra o lavrado, de talhe contra o lavor.

Daqui levou a pena de não poder ver o Batismo de Cristo que no batistério se encontra. Está a grade fechada, e por muito que se esforce não consegue distinguir mais do que as bilhas de barro do painel da esquerda, o que representa As Bodas de Canã. Ficam-lhe fora do alcance dos olhos o batismo e a tentação.

O Sol já vai por trás do castelo. O viajante segue para a sinagoga, onde a porta lhe é aberta por um velho alto que poderia ser judeu, mas não o mostra nas palavras, e que, exibindo uma monografia velha, manuseada e sebenta, conta a história que sabe. A quadra é simples, mas de grande harmonia, com a sua subida abóbada de arestas vivas, assente em quatro colunas delgadas, mas de exata secção, e nas mísulas das paredes. Pormenor curioso é o dos cântaros, um em cada canto, embebidos na alvenaria, e cuja função é beneficiar a acústica por aumento da ressonância. Fez o viajante as costumadas experiências, também como de costume nada provativas. Os construtores do teatro grego de Epidauro tinham melhor ciência na arte de fazer ouvir.

À noite, foi jantar ao Restaurante Beira-Rio. Comeu um bife magnífico, histórico, com aquele sabor que, depois de ter passado por todas as sublimidades do molho, regressa ao natural da carne, para assim permanecer na memória gustativa. E como um bem também nunca vem só, atendeu-o um empregado de rosto sério que ao sorrir ficava com a cara mais feliz do mundo — e sorria muitas vezes. A cidade de Tomar deve colocar ao peito deste homem a mais alta das suas condecorações ou comendas. Em troca contente-se com o sorriso, e vai muito bem servida.

Artes da água e do fogo

(...)

A entrada na cerca do castelo faz-se por uma calçada que contorna a elevação em que assenta a muralha virada a nascente. O viajante sobe-a em seu sossego, um pouco indiferente aos arranjos de canteiro florido e arruamento de saibro fino. Não está radicalmente contra, mas, se fosse chamado a opinião, votaria doutra maneira: é seu parecer que entre a envolvência e o envolvido deve haver uma relação direta que comece por observar dominantes comuns. A contiguidade de elementos tem de respeitar a consanguinidade. Parecem estas reflexões fora de propósito na esplanada de um castelo, mas o viajante apenas vai formulando ideias que nascem do que vê, e isso é o que fazem todos se andarem com atenção a si próprios.

Cá está o pórtico de João de Castilho, uma das mais magníficas realizações plásticas que em Portugal foram cometidas. Em rigor, uma escultura, esta porta ou uma simples imagem, não pode ser explicada por palavras. Não basta sequer olhar, uma vez que os olhos também têm de aprender a ler as formas. Nada é traduzível noutra coisa. Um soneto de Camões não pode ser passado à pedra. Diante deste pórtico não há mais do que ver, identificar os diversos elementos no campo dos conhecimentos de que se dispõe, indagar para suprir o que falta, mas isto será trabalho de cada viajante, não de um que veja por todos e a todos explique.

(...)

O Convento de Tomar é o pórtico, é o coro manuelino, é a charola, é a grande janela, é o claustro. E é o resto. De tudo, o que mais toca o viajante é a charola, pela antiguidade, decerto, pela exótica forma octogonal, sem dúvida, mas sobretudo porque vê nela uma expressão plástica perfeita do santuário, lugar secreto, acessível mas não exposto, ponto central e foco à roda do qual gravitam os fiéis e se dispõem a figurações secundárias. A charola, assim concebida, é, simultaneamente, sol radiante e umbigo do mundo.

Mas é sina dos sóis apagarem-se, e dos umbigos murcharem. O tempo está roendo com os seus invisíveis e duríssimos dentes a charola. Há uma decrepitude geral que tanto exprime velhice como desleixo. Uma das mais preciosas jóias artísticas portuguesas está murchando e apagando-se. Ou lhe acodem rapidamente, ou amanhã ouviremos o habitual coro das lamentações tardias.

(...)

Para o viajante, o claustro é seco e frio. Digamos isto doutra maneira: assim como Diogo de Torralva, autor do projeto, se não reconhecia no manuelino, e por maioria de razões no românico ou no gótico, também o viajante, que historicamente assistiu e assiste à sucessão dos gostos e dos estilos, pode, do seu ponto de vista de hoje, não se reconhecer no neoclássico romanista, e, como está obrigado a dizer porquê, diz que por secura e frieza da obra. É subjetivo isto. Pois será. Tem o viajante direito às suas subjetividades, ou então não lhe seria de nenhum proveito a viagem, pois viajar não pode ser senão confrontação entre isto e aquilo. Sosseguemos, porém: rejeições totais, não as há, como não há totais aceitações. O viajante deixa no claustro de D. João III uma paixão: aquelas portas do piso térreo, entre as colunas, com o seu janelão superior, triunfo da linha reta e da proporção rigorosa.

Da janela grande já tudo foi dito: provavelmente está tudo por dizer. Não se esperem do viajante adiantamentos. Apenas a convicção firme em que está de que o estilo manuelino não seria o que é se os templos da Índia não fossem o que são. Diogo de Arruda não terá navegado até às paragens do Índico, mas é mais do que certo que nas armadas seguiam debuxadores que de lá trouxeram apontamentos, esboços, decalques: um estilo de ornamentação tão denso como é o manuelino não podia ter nascido, armado e equipado, à sombra das oliveiras lusitanas: é um todo cultural colhido em terra alheia e depois aqui reelaborado. Perdoai ao viajante as ousadias.

Não são elas, contudo, tantas quantas deviam ser. Falta ao viajante o atrevimento de sublevar Tomar até que encontre quem lhe abra a porta da Ermida de Nossa Senhora da Conceição, que outra vez se lhe mete no caminho: a recordação do piso térreo do claustro não o larga. Se Diogo de Torralva foi tão longe aqui dentro, então terá de rever os sentidos de frio e seco que tão livremente tem utilizado. Porém, falta a ousadia, venha cá no domingo, não posso, tenho de partir já, então tenha paciência.

O viajante segue para poente. No caminho encontrará o aqueduto de Pegões Altos, demonstração de que a utilidade não é incompatível com a beleza: a repetição sucessiva dos arcos de volta perfeita sobre os arcos quebrados, de maior vão, aproxima a monumentalidade da construção, torna-a menos imponente. O arquiteto, por um artifício de desenho, veio a conceber um falso aqueduto, que serve de suporte ao verdadeiro por onde a água se transporta.

(...)

Quis o acaso que, para chegar ao paço, seguisse o caminho mais longo. Ainda bem. Pôde dar a volta a toda a povoação, ver as habitações desertas, algumas em ruínas, outras com as janelas entaipadas, e capelas dos passos sem imagens, nuas, lugares onde até as aranhas definham. Apenas em nível superior do monte se refugiaram os últimos habitantes, há alguma animação, crianças brincando, um restaurante de tolas pretensões heráldicas, fechado para alívio do viajante, que já se cansou de estalagens nobres e semelhantes fantasias.

O paço, de que resta pouco mais que as torres, é uma construção feita por gigantes. É verdade que, pedra a pedra, fará um povo de liliputianos uma torre capaz de chegar ao céu, mas estas, que a tanto não pretendem, dão a impressão de só poderem ter sido construídas por grandes braços e grandes músculos. Poderosos artífices estes foram, sem dúvida, para terem criado uma construção de características originais, com estas arcaturas ogivais, estes ornatos de tijolo, que imediatamente aligeiram a impressão maciça que o conjunto começa por transmitir. Parece que foram judeus magrebinos os construtores, os mesmos que depois vieram a construir a sinagoga de Tomar e são autores da cripta de D. Afonso, aonde o viajante logo irá. Recorda-se o viajante do Cristo de Aveiro, provavelmente de gente mudéjar, mete na mesma caldeira cristãos-novos e convertidos árabes, espreita para ver como fervem as tradições, as novas crenças, e as contradições de umas e outras, e começa a ver surgirem formas diferentes de arte, súbitas mutações infelizmente integradas antes do seu desenvolvimento pleno. Em Tomar a sinagoga, em Ourém esta cripta e o túmulo que guarda, mais o paço — aonde nos levaria o exame das circunstâncias, do tempo, do lugar e das pessoas, isto pergunta o viajante quando começa a descer a íngreme calçada que o devolve à planície.»

Notas doViajante

“Naquele dia, o céu entornava-se no interior do claustro principal. O sol sobre a pedra, o efémero sobre o intemporal, a realidade nítida sobre o passado, o agora-agora sobre a cristalização.”

Tomar e Constância

Tomar e Constância

“O Nabão era um espelho. Àquela hora, ao atravessar a cidade, o rio abdicava de qualquer impaciência que pudesse exprimir noutros pontos do seu caminho. Ali, condensava a claridade da manhã, céu imenso sobre Tomar, e apresentava-a naquela superfície absoluta, mercúrio líquido, espelho sulcado por canoas. Essas embarcações forneciam cores vivas à imagem que se apreciava a partir da Ponte Velha. As crianças que ocupavam o centro das canoas, braços ou remos, contribuíam com as suas vozes, também elas carregadas de manhã. Em fundo, o Jardim do Mouchão encarregava-se do verde, salgueiros a escorrerem sobre o Nabão, choupos a tremerem folhas.
Descendo as escadinhas para a Levada, escolhendo as portas certas, entrei noutro mundo. Por dentro, as telhas da antiga fundição protegiam do calor, mas deixavam perceber o acento do sol lá fora, recortavam-no com as suas próprias formas e, dessa maneira, estendiam um padrão incandescente. Essa luminosidade branda cobria as máquinas. Estavam cansadas de tantos anos, tanto metal em brasa. Ali, naquela manhã de Tomar, sabia-lhes bem o descanso do núcleo museológico. Visitante, quis acreditar que o meu olhar lhes afagava o aço. Pronto, queridas ferramentas, máquinas que tanto deram, podem agora descansar. Os tornos mecânicos com motor acoplado, as furadoras, as prensas e outras máquinas recordaram-me os sonhos industriais do meu pai. Em movimento, levamos a nossa própria bagagem, óbvia evidência. Assim, lembrei-me do jeito com que o meu pai pronunciava o nome desta terra, Tomar, o modo como o empregava em frases. Lembrei-me até de passar com ele diante da Levada e ouvir as suas explicações. Talvez falasse de como aqui se usava a energia hidráulica e, também, de como a força do rio poderia ser dirigida e aproveitada. Nas explicações do meu pai, havia palavras que eram como correias e roldanas, talvez semelhantes às que aqui foram usadas ao longo dos séculos, na moagem, na fundição, na central elétrica.
De regresso à travessia de uma aragem muito leve, avancei pela Rua Serpa Pinto, lojas de um lado e de outro, comércio familiar. Ao lado da esplanada, a porta aberta do Café Paraíso emanava outros dias, noites talvez, tempo sem relógio que o cingisse, pessoas diante de pessoas. Na Praça da República, virado para a estátua de Gualdim de Pais, templário, fundador da cidade, de costas para a Igreja São João Batista, pisando um manto de pedra, calcetado de losangos, levantei o olhar em busca do Convento de Cristo. E, de repente, eu mesmo estava lá. Aquilo a que se costuma chamar Convento de Cristo é, na verdade, um conjunto de edifícios. Os estilos que apresentam seria suficiente para ilustrar a história inteira de Portugal. Circulando neste espaço, são muitos os visitantes que procuram a janela do Capítulo, marinheiros de pedra. Outros vêm pela charola, querem pronunciar essa palavra em presença da própria. Mas não faltam razões para subir a este monte, para fazer soar o eco dos passos nestes corredores consagrados. Naquele dia, o céu entornava-se no interior do claustro principal. O sol sobre a pedra, o efémero sobre o intemporal, a realidade nítida sobre o passado, o agora-agora sobre a cristalização.
Estas obras tiveram início nas primeiras décadas da nacionalidade, estenderam-se até ao século XVIII e, de certa forma, têm continuidade ainda hoje na paisagem que se oferece lá de cima. Como um trabalho permanente: a cidade de Tomar através de troncos e ramos, a distância entre o indivíduo e o seu presente. Essa é a linha que dá início a todos os caminhos, até mesmo das estradas que saem de Tomar, rodeadas de vegetação, hortas tratadas, pequenas casas de pequenas povoações. Assim chegámos à beira do Tejo e, paralelos, seguimos a seu lado, também a nossa vontade comparável a um rio. Nessa linha, Tancos numa margem, Arripiado na outra, um barqueiro a ligá-las. Mais à frente, de passagem, assisti a meia dúzia de para-quedistas militares que se lançaram de um avião. Flutuaram como um espetáculo do céu, preparação para o insólito que nos esperava: um castelo no topo de uma ilha fluvial, como se aquele fosse todo o território do seu pequeno país.
Um mundo simétrico, refletido nas águas, também o Tejo é um espelho. Desse modo, todo o cenário que envolve o castelo lhe pertence. Deslocamo-nos ao castelo de Almourol para surpreendermo-nos com uma miragem. Depois desse quadro, como um sonho, e depois desse tempo, como o tempo de um sonho, precisei de reaprender certas noções de horizonte. Foi o que fiz na estrada até Constância, na ponte de ferro sobre o Zêzere. Portugal ensina-nos a olhar.”
José Luís Peixoto

O que visitar

Sugestões paraTomar e Constância

Na viagem revisitada de José Luís Peixoto, estes foram alguns dos locais destacados pelo seu olhar e pela sua escrita.

Mata Nacional dos Sete Montes

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“É assim que o rio vê a vila. A igreja matriz lá em cima, como uma coroa, ou como um título. Entre o céu e as águas, as ruas sobrepostas, a ocuparem todo o monte, como versos, um poema de versos livres, composto por palavras brancas e amarelas, pela cor das paredes das casas.
A partir deste barco a motor, observo Constância e, de repente, apercebo-me de que também Constância me observa com mil olhos, janelas que se distinguem daqui, impossíveis de contar. Todas as casas querem ver o rio e, nessa ânsia, formam um emaranhado. As pessoas movimentam-se no interior desse emaranhado, desse texto. É também aí que a história se entrelaça. Hoje, estão a preparar as ruas para as festas de Nossa Senhora da Boa Viagem. Imagino o som de martelos a baterem enquanto escuto o motor do barco, a água que rasga e o envolve.
A que rio pertencerá esta água? O Tejo funde-se com o Zêzere que, por sua vez, traz o Nabão no seu interior. Dois rios que decidem misturar-se é o início de um poema, como muito bem sabem os poetas: Tomaz Vieira da Cruz e a casa onde viveu, Alexandre O’Neil e a biblioteca com o seu nome e os seus livros, Vasco de Lima Couto e a casa onde viveu, Luís Vaz de Camões e toda a vila de Constância a amá-lo.”

José Luís Peixoto

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Cidade repleta de ecos dos Templários e da Ordem de Cristo, rodeada de comércio tradicional, de espaços verdes e do legado do cultivo ao longo do rio Nabão. Na cidade impera como símbolo impreterível da História o Convento de Cristo.
Castelo e Convento de Cristo

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Desde 1983 Património da Humanidade pela UNESCO, a Charola, oratório octogonal templário construído no séc. XII com faustosas esculturas, pinturas e talha dourada, e o Claustro Principal deste monumento impressionaram o Prémio Nobel e o Prémio Saramago nas suas viagens por Portugal. Com vista privilegiada para a Mata Nacional dos Sete Montes, o Convento de Cristo está repleto de influências do Renascimento, do Maneirismo e do Barroco.

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Às portas do Rio Nabão, este espaço de antigas indústrias e espelho de um povo movido por memórias e energia funciona numa dimensão museológica. São três os edifícios preservados, os Lagares, as Centrais Elétricas e as Moagens, que circundam a imponente zona da Levada. Há também uma aposta clara em oficinas de expressão e em exposições de artistas emergentes.

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Espaço de eventos culturais, como tertúlias literárias e workshops, este café-livraria abriu durante a pandemia em pleno centro histórico da cidade, proporcionando momentos de bem-estar e lazer à comunidade. Insensato é quem não degusta o menu, que privilegia os ingredientes naturais e locais, e não aproveita para procurar as últimas novidades das editoras ou volumes em segunda mão.

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